Sentimento de ódio no narcisismo – Trajetória de uma transformação numa psicoterapia psicodramática

SINOPSE: O artigo “Sentimento de ödio no narcisismo – trajetória de uma transformação numa psicoterapia psicodramática” explicita o aparecimento do ódio de uma paciente com distúrbio narcísico nas sessões, os aspectos contratransferenciais e sua abordagem teórico – técnica, sobretudo através da técnica do duplo.

ABSTRACTS: The paper “Hate’s feeling at narcissism – a way of change in a psychodramatic psychotherapy” explains the appearing of hate in a patient with a narcissic disturb at the sessions, the counter-transference aspects and his theoretical – technical approuches mainly double technic.

UNITERMOS: Psicoterapia psicodramática – ódio – narcisismo – técnica do duplo – técnica do espelho – identificação projetiva – contratransferencia.

UNITERMS: psychodramatic psychotherapy; hate; narcissism; double technic; mirror technic; projective identification; counter-transference.


“Se o homem é um ser que não é mas que está sendo, um ser que nunca acaba de ser, não é um ser de desejos tanto quanto um desejo de ser?”

Octavio Paz – O arco e a lira

1 – INTRODUÇÃO

Depois de passar pela angustiante busca de um tema para escrever, percebi que o mais presente dentro de mim era a minha história com Sandra, nas duas sessões semanais que acontecem há cinco anos. Pensei assustada: “pôxa”, vou ousar escrever a respeito de uma paciente que tem uma estrutura narcísica secundária, com a estrutura principal obsessiva. Narcisismo? Esse tema complexo que tem vários desenvolvimentos, vários enfoques, esse campo vasto, polêmico, abrangendo o texto denso sobre Introdução ao Narcisismo de Freud e outros, de numerosos estudiosos; e no Brasil, os trabalhos recentes de Fonseca, Cukier e Calvente , que são dos primeiros a respeito do tema no campo do psicodrama. E entre ler, pensar, estudar sobre o narcisimo em grupo de estudo, discutir com colegas para dar subsídio no atendimento dos pacientes e escrever buscando uma sistematização, mesmo que simples, vai uma grande diferença e uma grande dificuldade para mim. Mas um aspecto do tema, que é o sentimento de ódio no distúrbio narcísico, começou a se instalar dentro de mim com força, através de Sandra. O ódio dela me traz imagens de cataclisma, terremoto, furacão, vulcão em atividade. Assusta, me faz desejar um escudo que cubra o corpo para me proteger, tampões de ouvido e distância para ficar longe fisicamente. Abrir um guarda chuva entre nós duas. É um jorro de merda ou um vômito escuro em jatos fortes. Tenho vontade de agredir também. Vontade de entender e de penetrá-la com palavras, ações e afetos, que fertilizem este deserto afetivo, que transforme esta merda toda em estrume e daí possa nascer uma flor ou pelo menos um cogumelo não venenoso. Talvez aí ela possa começar a sonhar, acreditar nela, ver algo de bom em si. Nós duas nos enveredarmos por esse mundo interno, para ela assustador, monstruoso, que contém tamanha dor, que é como se lhe “arrancasse a pele”, pedaços de si ou “o corpo urrando de dor”.

A proposta de escrever sobre este tema, já confirmada por mim, tem limites bem definidos, que é mostrar, principalmente através dos aspectos da contra-transferência ou do contra-papel, o sentimento de ódio dessa paciente, abordar alguns aspectos teóricos e técnicos e trazer algumas reflexões sobre o narcisismo. Não é objetivo do trabalho fazer levantamento bibliográfico exaustivo. Algumas vezes pensei em escrever sobre a psicoterapia com esta paciente, depois achava que ainda não era tempo, pois precisava acontecer algum progresso mais visível. No entanto, deparei com uma fala do Freud: “as análises que conduzem a uma conclusão favorável em pouco tempo são de valor para a auto estima do terapeuta e para substanciar a importância médica da psicanálise; mas permanecem em grande parte insignificantes no que diz respeito ao progresso do conhecimento científico.(…)Novidade só pode ser obtida de análises que representem especiais dificuldades, e para que isto aconteça é necessário que a elas se dedique bastante tempo.” Trata-se de uma fala incentivadora, considerando as diferenças de abordagens psicoterapêuticas e adequando-a à minha realidade, que é dar contribuição que possa abrir espaço para discussão e reflexão.

O desejo de escrever sobre essa psicoterapia é também para expurgar o sofrimento que ela me trouxe e as emoções e sensações intensas que me despertou.

Os distúrbios narcísicos constituem núcleos profundos da personalidade neurótica, o que torna estimulante escrever, para detectar que em processos psicoterapêuticos de anos, com trabalho exaustivo sobre os conflitos, permanecem dificuldades fundamentais que se ancoram nesses núcleos, exigindo serem melhor conhecidos e trabalhados.

2 – DISTÚRBIO NARCÍSICO COM FOCO NO SENTIMENTO DE ÓDIO – ALGUMAS CARACTERIZAÇÕES DA PACIENTE

Eu e Sandra. Duas pessoas. Para Sandra somos quase sempre um. No princípio é a indiferenciação. E essa é uma das notas predominantes durante os primeiros tempos da relação dela comigo. É uma confusão na autoria das falas. Ela fala como se fossem suas, frases inteiras minhas e, irritadamente, coloca na minha boca frases dela: “Você disse que a minha infância foi infeliz.” E logo, nas sessões, irrompe em Sandra o ódio, como um furacão, que vai chegando forte, se impondo, devastando tudo e, durante meses, não acabava na própria sessão. Diminuía, mas ela saia ainda transtornada. Ela parecia possuída pelo demônio, falava com ódio de todos e de tudo, trazia com detalhes brigas com a mãe e a irmã, com palavrões, expelindo ódio, invejas, e enquanto falava ia se re-alimentando do próprio ódio, que crescia como labaredas de um incêndio infindável, devorando tudo, insaciável. Gritava, batia na cadeira, pegava um objeto delicado e ameaçava quebrá-lo. Não conseguia detê-la muitas vezes e nem abrir espaço para intervenções. Quando isto era possível parecia que ela não me escutava ou abria espaço só formalmente, para em seguida retomar a fala anterior ou ficava mais agressiva ainda. Tentei encaminhá-la para medicação, recusou terminantemente. Sentia-me impotente, buscando ansiosamente um jeito de me comunicar com ela. Às vezes ficava desesperada ou muito frustrada e raivosa. Tentei fazer duplos e espelhos. A paciente não entendia nenhuma metáfora. Falava-lhe do que eu sentia. Frente as intervenções, ela adotava uma postura arrogante e irritada, repelindo tudo ou não entrando em contato comigo. Quando comecei a fazer concretamente uma cena de maternalização com almofada, falando dos meus sentimentos para com ela e dos sentimentos dela de carência, solidão e desamparo (passarinho querendo comida, mas que quando vinha, recusava e brigava), Sandra parou, olhou e pareceu-me que aí começou a se abrir uma brecha para me escutar.

Foi assim o início do processo terapêutico de Sandra comigo. Ela vinha de duas psicoterapias anteriores. É uma moça muito bem cuidada, bem vestida, elegante, bonita, mas sem graça; olhar seco, expressão sem viço. Inteligente, instrução superior. Corpo tenso e rígido. Vinte e quatro anos no início da terapia, buscava um trabalho que a interessasse. Experimentou vários, até montar uma loja em sociedade com a irmã, onde trabalha até hoje, sendo bem sucedida. Mora com os pais, é filha do meio entre irmã mais velha casada e irmão solteiro que vive só e trabalha.

A queixa principal de Sandra é a impossibilidade de ter um namorado. Nunca namorou. Tem horror de ser virgem. Tem dificuldade também na relação com mulheres. É muito submissa ao outro.

Selecionei algumas falas da Sandra na apresentação da sua família:

-“Minha mãe é uma débil mental, bocó, idiota, faz o que todos querem.”

-“Meu pai, um omisso, fica na dele. Só conversa comigo de assuntos profissionais, nunca nada pessoal. Nunca teve contato físico com os filhos.”

-“Minha irmã é uma vaca, filha da puta, folgada, psicopata, só sabe mandar, acha que é uma rainha, cadela, estúpida, pensa que o mundo está aí para servi-la.”

-“Meu irmão é um maconheiro, irresponsável, psicopata também, fica trepando com a namorada na minha frente.”

-“E eu quero arranjar um namorado. Isto não acontece na minha vida. Odeio ser virgem: tenho vergonha de ser virgem com vinte e tantos anos.”

Este é o quadro familiar onde Sandra se sente inserida, indignada, porém submetida afetivamente. E este par de opostos (indignada/submetida) é o primeiro de uma série que vão aparecendo no decorrer do seu processo. Fica presa rigidamente nessas duas polaridades no desempenho dos papéis, não há matizes, o que é característica do desenvolvimento em etapas bem precoces. Aparecem as polaridades: dominador/dominado, algoz/vítima, abandonador/abandonado, rejeitador/rejeitado, torturador/torturado, invadido/esvaziado. Todas essas duplas complementares de papéis encaixam-se num modelo interno submetedor/submetido equivalente às categorias sujeito/objeto. O sujeito, ativo, poderoso despótico / o objeto, passivo, sem contato com o próprio desejo, numa posição de humilhação. Esse aprisionamento nessas duas posições, únicas possíveis para ela, no jogo de papéis (característica do distúrbio narcisista) produz sentimento de impotência, desespero e ódio na paciente. Ódio projetado no mundo, ódio do mundo, ódio de si mesma e nas relações com os outros. Essa estrutura bipolar é característica do distúrbio narcisista, se diferenciando da dinâmica neurótica que inclui outros pólos e em que há uma matização dos pólos.

A fala de Sandra é na maioria das vezes um monólogo cuspido, pronto, produto acabado, impositivo, ininterrupto, racional, exalando ódio. Fala a partir de uma posição de poder. Parece uma metralhadora automática que dispara e tem estoque infindável de munição, e que a própria ação de disparar, gera munição mais forte. Preciso interrompê-la sempre para eu falar, mostro isso para ela, faço isso de diversas formas, firme, brincando, reivindicativa, cortante. Assinalo também a posição de onde ela fala. Trabalho dramaticamente ao nível das técnicas do duplo e espelho.

A fala da paciente foi tendo uma mudança lenta gradualmente: 1) ela não dava espaço para mim; 2) ela dava espaço formalmente, mas não me escutava; 3) quando dava espaço, escutava e brigava logo; 4) quando dava espaço e estava mais tranqüila, o que poucas vezes acontecia, escutava e ficava com algum conteúdo dentro, que até podia aparecer em outras sessões. Sandra é quase uma “virgem”. A entrada do outro dentro dela é muito difícil.

3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS TEÓRICOS DO NARCISISMO

Quem sou eu? Como me sinto na relação comigo mesma? Considero-me uma pessoa com valor, com capacidades? E os meus limites? Vejo-os? Como? Em geral gosto de mim? Posso admitir faltas minhas sem matar ou morrer metaforicamente falando? Conheço meus ideais? Realizo-os ou me encaminho até eles? Sou ativa nisso? O que eu acho de mim mesma? Tenho desejo de brilhar? De ser admirada? Admiro pessoas que possam constituir modelos para mim? E os meus valores?

Quando começamos a levantar essas questões, estamos entrando na área do narcisismo, que faz parte de todos nós, definido em termos do mito de Narciso, como “amor que se tem pela imagem de si mesmo” por Laplanche e Pontalis.

Para Calvente, a fase narcísica de desenvolvimento do sujeito se situa nas três primeiras etapas da matriz de identidade do processo de aprendizagem emocional da criança (Moreno).

Vou fazer uma incursão rápida por essas fases para situar no referencial psicodramático moreniano, o narcisismo.

No princípio é a indiferenciação. O bebê ao nascer está neste universo indiferenciado, não integrado, que é sentido como uma unidade, quando acontece o ato da alimentação, englobando o bebê, a mãe – ego do bebê, funcionando fora dele auxiliando-o – e tudo o que envolve o ato. São vivências de completude e bem estar, onde ele, o bebê, a mãe e o resto do mundo vividos como “multiplicidade indivisível”, propiciam uma identidade básica de ser. A seguir, esse movimento integrado bebê, mãe, pessoas e coisas a sua volta, vistos por nós como um jogo contínuo de necessidades e expressões do bebê e o atendimento satisfatório da mãe e do mundo, vai possibilitar novos atos psíquicos que se resumem em separar a mãe desta continuidade unitária de experiência, iniciando o lento e gradativo processo de diferenciação (culminando neste primeiro universo com a inversão de papéis). Ao separar a mãe da unidade da experiência, o bebê vive a fascinação e o encantamento por ela e funciona como caixa de ressonâncias dos afetos que ela emite para ele. Nesses jogos com a mãe, vai desenvolvendo “atos rítmicos de participação e exclusão” e formando um esboço de imagem própria em configuração através da imagem emitida pela mãe (mãe espelhando o filho). Nessa etapa, a única possibilidade de registro é através do corpo que, quando se desvela no psicodrama, dá lugar a registros de climas e estados de ânimo. Estamos numa etapa narcísica onde “o mundo é o que imaginamos e nós somos o ideal”. Quando isto não é vivido assim, é sentido como um ataque. E só numa etapa bem posterior deixamos de ser o ideal, para ter ideais e, na medida que nos aproximamos dele, reforçamos nossa auto estima. E que é o ideal, senão a personificação das normas e regras familiares e sociais que governam nossos atos, relações, fantasias e afetos, em sua maior parte inconscientes e que podem funcionar imperativamente e sem flexibilidade (vínculo de ser) ou numa modalidade mais evoluída e abstrata (vínculo de ter), permitindo certo grau de escolha, e uma margem de fracasso sem desorganizar-se. Aqui caminhei com Hugo Mayer .

Penso que o ideal do ego pode também emergir das profundezas do ser com força, clareza e como uma integração de pensamentos, ideais conscientes, desejos, normas, sensações, sentimentos e posição filosófica frente a vida e tem a qualidade de despertar nosso amor, admiração e respeito, além de ser um regulador dos impulsos.

O que diferencia o desenvolvimento de um narcisismo normal com uma identidade bem constituída de um narcisismo patológico? Nesta etapa de identidade total ou narcisista, de bem estar, completude e fusão com o mundo o princípio organizador é o prazer. Então a criança se identificará com tudo o que é prazeiroso e o desprazer é projetado no mundo. Pode-se dizer que a criança é regida por um ego puro prazer. Começam a aparecer os primórdios da tele, a criança começa a se aproximar e se sentir atraída pelo que satisfaz o seu desejo e afasta-se daquilo que é externo que lhe provoca dor. Vai desenvolvendo sentimento de repulsa por esse objeto hostil, que é o antecedente do ódio. Os pais podem mostrar basicamente dois modos de funcionamento. Um deles é atendendo empaticamente as necessidades da criança, levando em conta as normas no desempenho do papel de protetores dela, oferecendo-se como modelos, o que a levará a interiorizá-los realisticamente, isto é, dentro do princípio de realidade dos pais . Aqui, quanto mais amor a criança recebe dos pais, melhor se estruturará seu narcisismo normal, que é condição para ter boas relações afetivas futuramente. Portanto, como se desenrola essa primeira etapa do desenvolvimento do indivíduo é de fundamental importância na constituição de sua identidade subjetiva num mundo de relações. Também a criatividade se origina nesse primeiro universo. Para Moreno, “parece ser um útil constructo teórico considerarmos o primeiro universo uma etapa distinta e especial da vida, tal como o são também a infância, adolescência a idade adulta e a velhice”.

Por outro lado, no narcisismo patológico, as relações pais e filho evidenciam outro jeito de funcionamento: os pais se colocam no lugar do ideal e tentam conformar o filho, segundo suas aspirações narcisistas. Não vêem o filho que têm, só o que desejam, e pretendem que o filho complete-os naqueles aspectos ideais, que não puderam conseguir por eles mesmos. Atribuem ao filho todas as perfeições e esquecem seus defeitos, projetando seu ideal narcisista no filho. Há uma estruturação resultante da internalização no filho, dos desejos narcisistas dos pais, que configura o denominado por Freud de ego ideal. Nesse narcisismo patológico há uma forte dependência do outro. A pessoa opera com categorias absolutas que caracterizam os vínculos de ser (próprios dessa etapa) como ser – não ser, presente – ausente, todo – nada, vivo – morto, bom – mal, etc. Espera encontrar e acredita reconhecer o ideal no outro (idealização). Quando se questiona esta estrutura narcísica há uma vivência de morte e o medo não é da morte mesmo, mas de perder esse referencial que compensa as feridas narcísicas dos pais (ego ideal). A meta a ser atingida é agüentar a morte do ‘filho ideal’ e, desentranhar os próprios desejos, para que se deixe de agir a partir de um ego narcisista, ideal, inconsciente e se comece a formar parte de um ego real, aceitando a incompletude e a finitude como atributos naturais da vida, renunciando à ilusão de que o exterior é aquilo que cremos que seja e à pretensão de achar que o mundo é algo unitário.

As perturbações narcísicas estão entre as mais profundas do psiquismo humano e se caracterizam basicamente por uma perturbação ligada à formação da identidade, um nível alto e constante de ansiedade, pelo temor de desintegração, que é projetado sobre o sentimento de si. As situações comuns de vida são geralmente experimentadas com um máximo de tensão como se estivesse em jogo a própria vida. Toda resolução parece implicar em questões de vida ou morte.

As defesas são variadas e muitos rígidas, negação, dissociação, idealização e outras, mas predominantemente a identificação projetiva e a desmentira ou denegação.

Como essa abordagem sobre os distúrbios narcísicos é muito complexa, recorri a vários autores numa tentativa de elucidar melhor o tema, não perdendo de vista que, para mim, o continente de todos esses conteúdos variados é o psicodramático.

Um desses autores é Kohut, um psicanalista austríaco que desenvolveu seu trabalho nos Estados Unidos e se dedicou ao estudo do narcisismo, com um foco no sentimento de ódio, mais abrangente que os outros autores consultados.

Kohut tem um enfoque teórico mais próximo ao psicodrama. Traz uma visão positiva do narcisismo, não negando sua vertente patológica, mas considerando o aspecto mais importante a ser enfatizado sobre o narcisismo sua linha de desenvolvimento independente, que vai de um estado primitivo de constituição do self (um todo psicológico) ao mais maduro, mais adaptativo e culturalmente mais valioso, que são os caminhos e as realizações do ideal do ego (ideal mais maduro, profundamente enraizado no indivíduo e mais ligado ao princípio de realidade).

4 – SENTIMENTO DE ÓDIO NO NARCISISMO: RELAÇÃO PACIENTE-IRMÃ

Vamos imaginar algumas cenas comuns possíveis de acontecer na vida de cada um de nós, e localizar o que sentimos:

1) você cumprimenta uma pessoa conhecida e ela não responde.

2) você está coordenando uma atividade num congresso e quando vai apresentar o conferencista, esquece o nome dele.

3) você está andando numa rua movimentada esbarra em alguém, escorrega, perde o equilíbrio e leva um tombo.

Bem, as sensações suscitadas serão provavelmente de constrangimento e vergonha. Estamos aqui frente a perturbações do equilíbrio narcísico a que Kohut chamou de “ferida narcísica”. A “ferida narcísica” é fácil de ser reconhecida pelos aspectos dolorosos que ela provoca, de constrangimento e vergonha, com correspondentes elaborações ideacionais conhecidas como amor próprio ferido ou sentimento de inferioridade. Desencadeia geralmente sentimentos de raiva.

Um sujeito narcisicamente vulnerável pode responder às feridas narcísicas com uma saída da situação ou com a “fúria narcísica”, que é uma denominação de Kohut a respostas agressivas, que podem ocorrer de diversas formas, mas que tem um matiz psicológico próprio, diferente de outros tipos de agressão. A “fúria narcísica” caracteriza-se por uma necessidade de vingança, de reparar uma afronta ou desfazer uma ofensa a qualquer custo, perseguindo esses objetivos compulsivamente e não sossegando até realizá-los. Qualquer detalhe mínimo na relação com os outros pode desencadear a fúria nessas personalidades narcísicas, uma discordância, já é suficiente. E é assim com Sandra. Qualquer opinião do outro diferente da dela, suscita um ódio intenso e descontrolado, que a tomava totalmente. Isto acontecia frente a intervenções minhas, assinalamentos ou a emitir uma opinião diversa da dela. Parecia que tinha sido espetada por um alfinete. O seu ódio imediato era tão veemente que ela chegava a ficar um pouco sem ar, transtornada. Defendia rígida e ferozmente esse seu mundo onipotente, unitário e atemporal. A diferença para ela é vista como uma falha sua, uma falha desse seu mundo narcísico, que a faz se sentir humilhada. Nesse mundo não são admitidos também erros e inadequações. Daí sua resposta furiosa. E vai erigindo mais defesas. Então a motivação principal da mobilização de defesas é a humilhação frente à ferida narcísica. Para Kohut, a onipotência da estrutura narcísica, a fantasia de grandiosidade e o desejo de fusão com um objeto onipotente ideal são a matriz das perturbações narcísicas e, implicitamente, do acionamento das fúrias frente às feridas narcísicas. O trabalho psicoterapêutico deve ser dirigido ao conhecimento e transformação dessa matriz.

Usando esse referencial, como podemos entender de onde vem tanto ódio de Sandra na relação com a irmã?

A relação de Sandra com a irmã é um dos temas predominantes dos primeiros tempos das suas sessões psicoterápicas.

Sandra conta as brigas que acontecem freqüentemente com a irmã. Seus olhos ficam injetados e arregalados, parecendo que vão pular das órbitas, gestos frenéticos, boca um pouco contorcida, voz raivosa, alta, quase aos gritos, parecendo um soco no ouvido. Revive a briga compulsivamente, desempenhando o seu papel e o da irmã à sua maneira, sem ser solicitada a isto. Não escuta, não aceita instrução nenhuma, não permite a minha entrada, não aceita limite no sentido de interrupção. Revive compulsivamente até o fim. Fica exausta e recarregada. A briga contém um ódio terrível, com invejas e destruição, lembrando ódios de figuras bíblicas, tipo Caim e Abel, onde personificava os dois papéis fundidos nela, o de injustiçada e o de justiceira implacável. Nesse período inicial, tudo o que eu dizia, quando escutava, tinha um rebate imediato, como se nada do que eu dissesse ou fizesse, penetrasse nela para valer. Parecia que ela era só ouvidos e boca.

Sandra mostra-se rígida, exigente, super responsável, trabalha com afinco e competência. Seus valores são justiça e ordem. A briga entre ela e a irmã é de uma enorme ferocidade de ambos os lados.Durante tempos, a irmã saía com a última palavra e Sandra se sentia derrotada, humilhada e impulsionada a novas brigas vingativas, configurando o “furor narcísico”. Lembra essa fala do Kohut: “a irracionalidade da atitude vingativa é mais assustadora nas personalidades narcísicas e paranóides, em que a capacidade de raciocinar permanece intacta e às vezes aumentada a serviço e sob o domínio de uma emoção avassaladora”.

Historicamente, na sua infância e adolescência, Sandra era totalmente submetida à irmã. Nessas brigas atuais depara com atitudes da irmã impossíveis de serem conciliadas com as suas. É um impasse, onde Sandra desiste temporariamente da resolução da situação com a irmã por estar presa a ela num vínculo de extrema dependência afetiva. Acredita que não pode trabalhar só, por ter dentro de si uma ameaça de uma profunda depressão, e que a única pessoa possível de fazer uma sociedade com ela, no momento, é a irmã. E assim se estabelece uma relação de poder da irmã sobre ela, que é negada até a culminância das brigas, alimentando cada vez mais o ódio. É um vínculo suplementar, característico do narcisismo patológico. A ferida narcísica dela está ligada aos vínculos dependentes maternos, à uma carência, que ela fantasia, defensivamente, que pode ser suprida por um namorado.

Durante os meses iniciais de terapia, o ódio de Sandra me parecia muito vital para ela, apesar de assustador e desproporcional. Eram momentos da sessão em que ela transmitia uma energia forte, que lhe dava vida. Excetuando esses momentos, ela se mostrava apagada e sem ânimo. Atualmente a irmã está afastada do trabalho e a relação entre elas está distante e formal, cumprindo um objetivo de Sandra, que percebe também que já pode ter um trabalho só, sem a irmã, apesar disso dar-lhe uma nostalgia fugaz, pois não está de acordo com um aspecto do seu ideal consciente que é ter uma boa relação com a irmã e poder trabalhar bem com ela. Nessa fase do processo, já assume em alguns papéis profissional, social e afetivo (irmã, amigos, conhecidos) uma atitude mais ativa e responsável em relação às suas dificuldades, desejos, sentimentos e às suas crises de furor narcísico que são menos intensas e rígidas, de duração mais curta e menos freqüentes, porém mais refinadas na forma. Às vezes faz um espelho meu, caricaturando sarcasticamente, quando incomodada com alguma intervenção. Chega a ser engraçado. Assinalo, damos risadas juntas, e depois interpreto ou não. Acho que esses momentos de humor, raros e recentes entre nós, mesmo partindo da agressão que é o possível para ela, são gostosos e cálidos, matizes emocionais raros na sua relação com os outros. Percebo que lentamente também está assumindo o papel de sujeito, que tem a potência, deixando o aspecto passivo, característico de toda patologia.

Outro aspecto que merece um destaque nas manifestações mais importantes das perturbações narcísicas, junto com a raiva, é a vergonha .

O indivíduo com tendência a sentir vergonha vivencia qualquer contrariedade na vida como ferida narcísica. Nas discussões, não vê seu opositor como uma pessoa independente (relação suplementar), dirigindo-lhe uma raiva implacável. Também frente a situações potencialmente provocadoras de humilhação, responde atacando os outros, às vezes, até antecipadamente, procurando infligir a esses, as feridas narcísicas que ele mais teme sofrer (furor narcísico).

Recentemente, quando acontece a fúria narcísica de Sandra na relação comigo, mostra vergonha e culpa (fala sobre esses sentimentos). A preocupação com o outro se sentir mal com a sua raiva, começa a aparecer. É fugaz, mas já aparece. Esses pequenos progressos, intermitentes, são gratificantes. E com esses pacientes com distúrbios narcísicos, acho que, nós, psicoterapeutas, temos que valorizar os micro progressos que acontecem, porque são processos muito difíceis, de evolução lenta que testam constantemente nossa capacidade de tolerar frustrações.

Ainda na abordagem do ódio está a inveja, que é um acompanhante muito freqüente de Sandra, um pouco menos freqüente nos últimos meses, às vezes diminui, raramente desaparece. Interfere bastante nas suas relações com as pessoas, principalmente com a irmã e as amigas. Sua história com as amigas, no início da psicoterapia, evidencia momentos de indiferenciação com o mundo e o desenvolvimento da sua inveja. Conseguia ter muitas amigas, fazendo um vínculo suplementar e ficando submetida ao domínio delas. Identificava-se totalmente com as amigas, se confundindo. Percebia que havia algo errado com ela, quando as amigas partiam para a ação, quando iam ter relacionamentos afetivo- sexuais com os parceiros e ela ficava só, frustrada, “chupando dedo” (sic) . Desenvolveu uma inveja feroz com amigas e colegas. Os homens que apareciam, se interessavam sempre pelas outras, mesmo quando num primeiro momento tivessem se interessado por ela. Afastou-se das amigas, mantendo com elas uma relação bem esporádica, entrando numa solidão e depressão intensas. Nessa época, já trabalhava sendo bem sucedida. Tentava investir em vão no seu projeto de ter um namorado, casar e ter filhos como as amigas. Foram se acentuando traços de orgulho, arrogância, onipotência e ódio que sustentavam e estimulavam sua inveja, conjuntamente com um projeto próprio (ter um namorado), aparentemente possível, mas que para ela era um projeto grandioso, fora das suas possibilidades reais naquele momento e, ainda hoje. Ia se sentindo seca e esvaziada, como o “ET” (sic).

Atualmente consegue aceitar razoavelmente os limites de sua realidade; sua inveja aparece intermitentemente.

5 – FRAGMENTOS DE SESSÕES

Nos últimos meses começaram a aparecer sinais de gratidão, e houve uma sessão muito especial onde os insights, a integração de muitos aspectos, o seu crescimento e a gratidão foram a tônica.

Fragmentos:

Sandra: -“Quero ter alguma coisa boa para contar para você”. Em outra sessão: “quero fazer alguma coisa boa para contar aqui”. Eu falo para ela que ela já está fazendo, pois seu desejo já traz consigo gratidão. Ela se emociona.

Uma sessão pós viagem em Julho 96:

Sandra – “Na viagem que fiz, que foi maravilhosa, lembrava muito de você, de tudo que você me disse. Entendi tudo, o que era deixar uma pessoa entrar em mim, me alimentar afetivamente, fazer trocas afetivas com as pessoas. Eu me senti bem, relaxada e alegre na companhia das pessoas. Fiquei com uma turma de sete pessoas que se formou lá. Não senti nenhum mal estar, angústia, problemas físicos. Tudo foi muito lindo. Nunca vivi coisa igual. As pessoas gostavam de mim, me admiravam e eu gostei delas. Fiquei com uma colega no quarto e nos demos muito bem. Claro que sobre namorado eu falei superficialmente, não queria aprofundar nisso. E deu para deixar isto de lado e desfrutar de tudo que acontecia e que eu ajudava a fazer acontecer. Era maravilhoso estar com as pessoas. Todos muito carinhosos, divertidos e amigos. Lembrava muito de você, queria logo contar para você todas essas coisas”. Sandra falava calidamente num contato verdadeiro consigo mesma e comigo, seus olhos brilhavam e todo o seu ser vibrava de emoção. Espontaneidade à vista! Era mesmo muito lindo e gratificante. Bem, nessa sessão, nós duas estávamos muito emocionadas, chorávamos e ríamos juntos. Foi um marco no seu processo. O acontecer dessa vivência tem a ver com um momento da paciente no seu processo terapêutico, que lhe permite diminuir expectativas de fantasias grandiosas, uma melhora na sua auto-estima, um projeto de viagem mais adaptado a realidade, o que lhe traz mais confiança e abertura para o novo e a mudança. Essa vivência de dez dias, fez com que Sandra vislumbrasse a possibilidade de ter uma vida cotidiana diferente da atual, de empreender mais vigorosamente uma busca nesta direção mais confiante e com mais esperança.

6 – TÉCNICAS: DUPLO, ESPELHO, TOMAR PARCIALMENTE O PAPEL DO OUTRO, DUPLO A PARTIR DA IDENTIFICAÇÃO PROJETIVA

Um mecanismo básico que Sandra usa na sua comunicação comigo é a identificação projetiva. O que é a identificação projetiva? Segundo Laplanche e Pontalis , a identificação projetiva é uma “expressão introduzida por Melanie Klein para designar um mecanismo que se traduz por fantasmas (fantasias), em que o indivíduo introduz a sua própria pessoa (his self) totalmente ou em parte no interior do objeto para o lesar, para o possuir ou para o controlar”. Mecanismo muito estudado por Bion e outros psicanalistas, que trazem modificação e ampliação dessa definição inicial.

No Brasil, o psicodramatista, Castello de Almeida explica: “Na identificação projetiva, o ego colocaria fontes suas (atributos e funções, bons e maus) ‘dentro’ do outro (pessoa ou coisa) para livrar-se delas, para preservá-las ou, ainda, para controlar ou agredir o outro (fase projetiva). Quando o ego recebe ‘de volta’ a projeção realizada (fase introjetiva), recebe-a com modificações ocorridas por ter-se integrado com os sentimentos do outro. De qualquer forma, esta ‘volta modificada’ será sempre vista do ângulo de quem projetou anterior e primariamente” .

No processo psicoterápica de Sandra, percebo que ela lança no meu interior mal estar, náuseas, ódios, desânimo, ridículo, impotência, sensação intensa de secura afetiva, vazio, paralisação, peso, conteúdos que durante um bom tempo de terapia me confundiam e me deixavam impactada no momento. Não era só um clima que vinha dela e nos envolvia. Era algo que me contaminava repentina e intensamente e que por vezes continuava em mim após a sessão. Às vezes, no início do processo, confesso, sentia um certo horror de tudo isso. Quando as identificações projetivas eram menos intensas e dependendo dos seus conteúdos e da época eu me perguntava: isto sou eu ou ela? Essa discriminação nem sempre era fácil.

Durante um bom tempo do processo com Sandra, eu não reconhecia esse mecanismo até que, ao percebê-lo, comecei a dar-lhe operacionalidade, através das técnicas do duplo e do espelho. Essa é a contribuição do psicodramatista a um conceito da psicanálise.

Fui percebendo que já havia desenvolvido uma capacidade de “reverie” com Sandra, que podia conter seu material projetado dentro de mim, me identificar com boa parte deles naquele momento e transformá-los em duplos e espelhos, com o objetivo dela observá-los, pensar sobre eles e compreendê-los emocionalmente. A diferença desse tipo de duplo a partir da identificação projetiva com o duplo comum, é que, aqui se parte do sentimento ou conteúdos do paciente que estão dentro do terapeuta. Não é se colocar no papel do outro, ou captar climas ou sentimentos, mas perceber que se está invadido por conteúdos do outro, possibilitando compor o duplo inspirado nesses conteúdos.

Às vezes, a proposta é só de conter o material e trazê-lo num outro momento. Sandra parece precisar se livrar por um tempo de alguns conteúdos internos muito difíceis. Talvez para não ficar tão sobrecarregada. Ou para ter algum espaço interno. Enfim para tornar mais suportável esse material.

Principalmente nos primeiros anos da psicoterapia os conteúdos internos eram de uma densidade desagradável e negativa. Às vezes ela estava contando uma situação de trabalho (área um pouco mais tranqüila para ela) e uma sensação de um peso enorme ia se instalando com força dentro de mim. No início só assinalava e ela confirmava imediatamente, mas ela se negava a falar sobre isso. Comecei a usar o duplo, para ela poder ir percebendo e discriminando o conteúdo, ou a técnica do espelho para dar uma distância e Sandra conseguir ver de fora. Numa das sessões em que ela falava sobre os homens percebi dentro de mim um profundo mal estar, náusea. Duplo: “que mal estar! Eu sou uma porcaria, uma anormal. Como é isso de ser mulher? Não entendo disto. Como as pessoas conseguem ter um namorado? Qualquer um. Até a empregada da minha casa. Porque eu não? O que eu tenho? Sinto falta de carinho, quero ser tocada nos braços, nas costas, nos cabelos, no rosto. Essa coisa de sexo não entendo, sinto-me uma criança pequena, menino, menina, não importa. Não sinto sensações no meu corpo da cintura para baixo. E aí? Como faço? Quero um homem do meu lado para me fazer carinho como eu gosto e fazer com que eu me sinta normal, igual a todo mundo. Não ter essa sensação de esquisitice, de que todos estão vendo que há algo errado comigo. Na verdade não sei o que é ser mulher e sofro com isto”.

Paro, quando olho para Sandra, ela está séria, compenetrada, assombrada, olhando para mim e vai dizendo devagar: -“Vejo em mim tudo isto que você falou. Você fala tudo isto com voz suave, sem raiva, assim até dá para as pessoas aceitarem.” -“Sinto falta de carinho e de, passa na minha cabeça ir para a cama dos meus pais, dormir entre eles, ou na casa da minha amiga Joana, dormir entre ela e o marido.” A sessão continua, daí a pouco com ela refletindo: -“Se isto passa pela minha cabeça é que… (meio irritada e percebendo o novo fenômeno) é uma fantasia não?” Eu concordo e digo para ela que já está conseguindo usar a imaginação, ter fantasias.

Faço os duplos dela, excluindo a raiva, porque na verdade a raiva não está geralmente presente nesses conteúdos lançados em mim. Mas também porque, quando a raiva está presente, parece que ela serve de anteparo (defesa) até os conteúdos mais profundos.

Na técnica do espelho que também uso bastante com Sandra, incorporo a raiva no papel e é mais pesado para ela, às vezes diz: “não agüento ver isso”. Quando isto acontece, procuro estar mais perto afetivamente logo depois e passo a trabalhar geralmente no nível verbal.

Às vezes trabalho com duplo e espelho juntos.

Uma outra forma de trabalhar com Sandra dramaticamente, na medida em que ela não inverte papel, nem toma o papel do outro (características do distúrbio narcisista) é a montagem de cenas dramáticas que faço a partir do material que ela traz e às quais ela “empresta” a fala aos personagens ou a desenvolve mais. Muitas vezes ela precisa de uma distância, para observar, e compreender emocionalmente uma situação que traz e a cena, como uma unidade dramática mais estruturada, possibilita mais atingir esses objetivos. Além disto nessa última técnica, que chamo de tomar parcialmente o papel do outro, ela começa a ter um papel mais ativo, mais participante.

7 – EVOLUÇÃO DA PACIENTE

Vou trazer uma impressão que tive de Sandra, no início da sua psicoterapia: Estou frente a uma virgem, que tem horror e vergonha de ser virgem, mas que defende sua virgindade ferrenhamente com unhas e dentes. Outra metáfora de Sandra apareceu numa das muitas supervisões: Planta seca, que necessita de água, mas se recusa a ser regada.

Atualmente, penso que Sandra, ainda virgem do ponto de vista sexual, não é mais virgem do ângulo das relações afetivas. Ainda é muito difícil para ela ter uma relação afetiva boa com o outro, mas já consegue em situações mais protegidas, esporádicas (viagens) ou na relação comigo e com alguns amigos, por alguns momentos. Sua fúria narcísica está menos freqüente, com uma durabilidade menor e muitas vezes acompanhada de culpa. A inveja, ainda muito freqüente e forte, já é mitigada muitas vezes por sentimentos de gratidão. As defesas estão menos rígidas.

Por alguns momentos, no contato comigo, já aparece uma menina bonita, forte, espontânea e emocionada.

– Uai, é Sandra !!!

8 – CONCLUSÕES

I – Considerando que os distúrbios narcísicos são constituídos nas primeiras etapas da matriz de identidade emocional da criança, ou seja, no primeiro universo moreniano, penso que o trabalho psicoterapêutico deve ser dirigido às características desse universo evidenciadas no paciente, propiciando uma incorporação desses aspectos primitivos ao ego do paciente, ou à sua realidade.

II – Constato na prática clínica psicodramática que as técnicas do duplo e do espelho são fundamentais no trabalho com pacientes com distúrbios narcísicos. Essas técnicas cumprem os papéis de continente e espelhamento empático das sensações, emoções, sentimentos e atitudes do paciente, funcionando como ponte para o desenvolvimento de um sentimento de si e imagem de si mesmo mais reais e amorosos. Facilitam a conexão do paciente com seu verdadeiro self, dotado de espontaneidade, abrindo a possibilidade de ir até o outro.

III – Considero que o duplo, a partir da identificação projetiva, instrumentaliza o trabalho psicoterápico, trazendo uma discriminação maior das possibilidades de composição dessa técnica e facilitando a integração de aspectos mais primitivos do paciente ao seu ego.

IV – As características da matriz dos distúrbios narcísicos de Kohut são muito semelhantes às características das primeiras etapas do desenvolvimento da matriz de identidade emocional da criança, conforme Moreno.

V – Penso que, ao abordar terapeuticamente o ódio no narcisismo, depois de um trabalho sobre a matriz dos distúrbios narcísicos, há necessidade do paciente perceber sua participação ativa na produção dos seus ódios e, o terapeuta também ajudá-lo no estabelecimento de limites para sua raiva e, nesse sentido, na reeducação do seu comportamento a partir da sua gênese mental.

9 – Referências BibLiográficas

1. Calvente, C. Psicodrama – narcisismo – creatividad. p.4, 1996.

2. CASTELLO DE Almeida, W. Defesas do ego. 1 ed. São Paulo, Ágora, 1996.

3. Cukier, R. Quando Narciso encontrou Moreno: o psicodrama dos distúrbios narcísicos de personalidade. p.29, 1996.

4. Fonseca Filho, J. d. S. Diagnóstico da personalidade e distúrbios de identidade. Revista Brasileira de Psicodrama, Vol.3(1), p.21-29, 1995.

5. Freud, S. História de uma neurose infantil. 1 ed. Rio de Janeiro, Imago, 1969.

6. Kohut, H. Self e narcisismo. 1 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1984.

7. Laplanche, J. and Pontalis, J. B. Vocabulário da Psicanálise. ed. Lisboa, Moraes Editores, 1970.

8. Mayer, H. Narcisismo. ed. Buenos Aires, Ediciones Kargieman, 1982.

9. Menegazzo, C. M. Umbrales de Plenitud. ed. Buenos Aires, Ediciones Fundacion Vínculo, 1991.

10. Moreno, J. L. Psicodrama. ed. São Paulo, Editora Cultrix, 1975