Por Mário Tagara
Resumo
Ainda hoje, a chacina do shopping Morumbi, ocorrida em São Paulo, no dia 3 de novembro de
1999, é prontamente associada à influência de um filme – “O clube da luta” (1999), de David
Fincher. No imaginário do senso comum, de vários jornalistas, acadêmicos e intelectuais, o filme
foi o responsável direto pela atitude estremada do estudante de medicina, Mateus Meira, que, na
ocasião, acabou executando 3 pessoas e ferindo outras 5. O local em que o crime ocorreu, um
cinema localizado no referido shopping center, que exibia “O clube da luta”, filme repleto de
cenas de violência, corroborava a tese de culpabilidade do cinema e de suas “influências
nefastas”, e o site Observatório da imprensa é quem mais encampa a idéia. O presente artigo
tem por missão desfazer o equívoco presente nesse tipo de associação, bem como investigar as
suas raízes mitológicas .
Palavras-chave: mitologia, simulacro, violência, cinema, jornalismo..
1 Mestrando em Comunicação
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1.0 Introdução
No dia 3 de novembro de 1999, o estudante do sexto ano de medicina, Mateus Meira,
munido de uma submetralhadora 9 mm., atira contra os espectadores que assistiam à projeção
de um filme, dentro de um Shopping Center de São Paulo.
Meira chega a matar três pessoas e ferir outras cinco, até ser desarmado pelos outros
espectadores. Caso o cinema estivesse lotado – na sessão havia apenas 23 pessoas – e a
metralhadora disparasse mais rapidamente, a tragédia poderia ter sido pior.
Horas depois do incidente, a sociedade perplexa indagava os motivos que levaram um
estudante da classe média a proceder de tal maneira. Os distúrbios mentais do assassino, a
possibilidade dele estar drogado e a facilidade em conseguir armas, foram as explicações
preliminares. As primeiras declarações do assassino dizendo confundir as pessoas com alvos de
videogame, um bilhete achado pela polícia culpando toda a mídia pelo ocorrido, além de
afirmações alegando identificação com o protagonista do filme exibido naquele dia – “O Clube da
Luta”, do cineasta David Fincher -, mudam o enfoque de boa parte dos veículos jornalísticos.
Muitos chegam ao veredicto: ‘a cultura da violência’ envolvendo televisão, videogames e,
principalmente, o cinema e o filme “O Clube da Luta”, seria a responsável direta pela ação
criminosa do estudante de medicina. O site Observatório da Imprensa, entidade civil, não –
governamental, não-corporativa e não-partidária, que se autoproclama como sendo uma espécie
de Ombudsman de toda mídia jornalística, é quem mais encampa a idéia da culpabilidade do
cinema, um dia após a chacina.
O jornalista Alberto Dines, editor-responsável pelo site, lidera as acusações sem
demonstrar sequer ter assistido ao filme. Em seu artigo, que abre uma série de textos sobre o
assunto, Dines revela sua posição a partir do título: “Clube da Morte”. Seu texto tem nove blocos;
em sete deles, Dines faz menção direta ao filme, culpando-o categoricamente pelo ocorrido sem
cogitar qualquer outra hipótese.
Outro integrante do Observatório, o consultor editorial Mauro Malin, estende as acusações à
violência do cinema em geral e afirma que a sétima arte é o exemplo maior e deplorável de
violência midiática. Essa mesma violência teria chegado à televisão e aos noticiários em razão
dos filmes. A crítica de cinema, a norte-americana Pauline Kael, estaria certa, segundo Malin, de
ter alertado o mundo das “influências nefastas” de filmes “violentos e irresponsáveis”, como
“Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, em meados dos anos sessenta.
No dia 3 de junho de 2004, a justiça condena o ex-estudante de medicina a cento e vinte
anos e seis meses de reclusão. Os jurados rejeitam a tese de incapacidade mental do acusado. O
psiquiatra responsável pelo caso diz que Mateus Meira, apesar de sofrer de transtorno de
personalidade esquizóide, estava plenamente consciente do que fazia e não estava confundindo o
real com imaginário.
Outras investigações dão conta de que o ex-estudante exibia sinais de extrema
agressividade muitos anos antes da chacina e que premeditara o crime com sete anos de
antecedência, quando nem se cogitava a produção do filme “O Clube da Luta”. Antigos colegas
de classe afirmaram que Mateus sofria de Bullying no colegial. A defesa do estudante, nos
momentos finais do julgamento, sustentou a hipótese de que a principal razão do crime residia no
fato de Mateus ter um relacionamento extremamente conturbado com o pai.
Essas informações posteriores e uma série de outras dão conta que os jornalistas Alberto
Dines e Mauro Malin estavam completamente equivocados ao proclamarem o veredicto
categórico de que o cinema seria o responsável maior pelo crime cometido por Mateus. Esse
mesmo veredicto, com uma carga enorme de precipitação e pré -julgamento, não se restringiu
apenas aos jornalistas citados. Muitos outros colegas de profissão, articulistas, educadores e
psicólogos haviam afirmado a mesma coisa, seja na internet, nos telejornais e no jornalismo
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impresso. Num momento de comoção, perplexidade e clima de inquisição, foram poucos aqueles
que se atreveram a defender o filme e o cinema das acusações levantadas na época.
Nesse relato verídico, um emparelhamento singular se configura, reunindo dois veículos de
comunicação da chamada era industrial, cinema e a mídia jornalística. Esta última tenta acuar o
cinema, colocando-o no banco dos réus. Muitos aspectos saltam aos olhos, implicando reflexões
das mais profundas: teria o cinema sofrido o mais duro, e injusto, ataque desde a época da
ditadura militar em plena vigência da democracia em solo brasileiro? Por que isso aconteceu? Por
que grande parte da mídia jornalística e o site Observatório da Imprensa, em especial, erraram em
suas análises, incriminando precipitadamente o cinema?
Em abril de 2007, a história se repete: o estudante de origem sul-coreana, Cho- Seung-Hui,
é responsável por outra chacina na Universidade de Virginia Tech, nos Estados Unidos.
Professores dessa instituição, responsabilizada por negligência num primeiro momento, decidem
mudar o foco das atenções, ao elegerem o filme sul-coreano, “Oldboy”, de Chan Wook Park,
como a mais provável fonte de inspiração para a violência do estudante. O depoimento dos
professores pauta imediatamente uma parcela considerável dos veículos de comunicação, que
veiculam o “veredicto” dos professores, sem qualquer tipo de contestação.
Ainda hoje, a chacina do shopping Morumbi é prontamente associada à influência do filme,
“O clube da luta”, no imaginário do senso comum, no imaginário de muitos dos jornalistas,
acadêmicos e intelectuais. Essa constatação assustadora e inquietante torna plenamente
justificável a realização do presente artigo. Paralelamente, há de se perguntar as razões da mídia
jornalística sequer ter se preocupado em questionar a veracidade das declarações de Mateus
Meira e dos professores de Virginia Tech, que responsabilizaram o cinema pela ocorrência das
duas chacinas. Por que refutar tão prontamente – ou nem sequer levantar – a hipótese de
subterfúgio premeditado nessas declarações? No caso específico de Mateus, por que dar tanto
crédito às declarações de um assassino plenamente identificado, com razões de sobra para
encontrar um bode expiatório e, com isso, amenizar a própria responsabilidade?
1.1 As acusações do observatório da imprensa
As edições n.78 e n.79 do site Observatório da Imprensa, compreendidas no período de
5 de novembro até 20 de novembro de 1999, dão ampla repercussão ao caso “Mateus Meira”.
São cerca de 25 textos opinativos sobre o assunto – 21 deles previamente selecionados dentro
daquilo que foi a cobertura da mídia jornalística sobre o assunto, somados a outros quatro textos
produzidos por jornalistas ligados ao Observatório; sendo que 13 deles – incluem-se todos os
quatro textos do mesmo Observatório – culpam o cinema, o filme, “O clube da luta”, e a ‘cultura
da violência’ pela chacina no Shopping Center. Apenas um dos textos previamente selecionados
se propõe a defender o cinema – os demais apontam outras possíveis razões para o crime,
sobretudo, a facilidade em encontrar armas através de pessoas ligadas ao narcotráfico.
Questões como o estado mental do assassino, seu histórico pessoal e possíveis intenções
ocultas sequer foram levantadas nos textos selecionados pelo Observatório.
O jornalista Alberto Dines, principal nome do Observatório, já começa a ilustrar sua
posição no título do primeiro artigo, de sua autoria, que abre a discussão: “Clube da morte”,
trocadilho com “Clube da luta”. Seu texto tem nove blocos, em sete deles, Dines faz menção ao
filme, direta e indiretamente. Faço um resumo em tópicos das principais idéias:
1 – “Clube da luta” é um dos filmes mais violentos da safra dos filmes mais violentos.
2 – Foi inconseqüente a exibição do trailer do filme durante o horário nobre da televisão pela
Rede Globo.
3 – Meira começou a atirar minutos após ver uma cena idêntica no filme, segundo relato de
espectadores. (trata-se de um equívoco de Dines, pois não existe a tal cena).
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4 – A mídia pecou por não ter denunciado antes a carga violenta do filme.
5 – Havia um bilhete culpando a mídia – “Mídia, realidade, sociedade hipócrita”. (Dines mistura
mídia jornalística, mídia de entretenimento e mídia artística num único bloco).
6 – A violência de Mateus Meira é oriunda da violência exógena, ambiental, transmitida,
magnificada e introjetada pela mídia. (referência direta ao filme).
7 – 0 cenário é cúmplice da chacina – o cinema e o próprio filme.
8 – A declaração de Mateus tem fundamento e ilustra confusão entre imaginário e real – ele não
sabia o que estava fazendo e o filme estava diretamente ligado a toda confusão. “Uma das
poucas declarações do assassino antes de ser instruído pelo advogado está no Jornal da Tarde
(quinta-feira, pág. 12-A): ‘Eu não sabia se ia atirar na tela, nas paredes ou na platéia’. Reparem:
todas as opções do assassino estão relacionadas com o filme”. ( tal informação foi refutada
posteriormente pelo psiquiatra que acompanhou o caso)
9 – Os Jornais erraram em defender a tese do desequilíbrio mental. O clima e o ambiente em que
os assassinatos ocorreram foram erroneamente esquecidos.
10 – A ‘cultura da violência’ – leia-se filmes, novelas e música – é capaz de produzir uma
sociedade onde a brutalidade é banalizada.
Por fim, entre tantos outros textos que elegem o cinema como bode expiatório, o site
Observatório da Imprensa utiliza-se de um editorial publicado pelo Estado de São Paulo
(09/11/99), para reforçar solenemente a própria posição do veículo. Entre outras coisas, o
editorial afirma que: “É inegável que, nos dias atuais, a ‘cultura da violência’ onipresente no
repertorio da indústria do entretenimento de massa – centrada, por sua vez, na mídia eletrônica –
é a principal responsável pela proliferação de comportamentos anti-sociais extremados”.
1.2 – O caso Mateus Meira: por trás da cortina mitológica
Numa entrevista concedida à revista Veja, edição 1623, de 10/11/1999, o estudante de
medicina, Mateus Meira dá as seguintes declarações negando sequer ter assistido ao filme,
“Clube da luta”:
Veja: Por que você escolheu um cinema?
Meira: Para mim, tanto fazia. Poderia ser na Presidência da República ou na Câmara dos
Deputados. Mas nesses lugares tem detector de metal. No shopping, eu sabia que não tinha.
Veja: Você já tinha visto o filme?
Meira: Não.
Veja: Você estava planejando isso havia muito tempo?
Meira: Tenho esses pensamentos há sete anos.
Veja: Há alguma razão específica para esses pensamentos?
Meira: Eu escuto vozes. Elas me deixam louco. É como se tivesse uma câmara me filmando o
tempo todo. Naquele dia, escutei uma dessas vozes na platéia”.
A mãe do estudante, Alina da Costa Meira, numa entrevista concedida à revista Época,
edição 89, de 31/01/2000, dá detalhes históricos do comportamento agressivo de Mateus e das
constantes manifestações de problemas psiquiátricos, muito antes do filme “O clube da luta”
sequer ser cogitado a sair do papel. Nenhum dos 25 textos selecionados pelo Observatório da
Imprensa para ‘refletir’ sobre a chacina menciona a importância de se buscar tais informações e
‘refletir’ sobre elas.
Informações posteriores à avalanche de sensacionalismo de boa parte da mídia, durante
a cobertura da chacina no Shopping, dão conta de que Mateus Meira afirmou ter vários surtos
psicóticos muito antes de executar o crime. Já em 1993, “Meira teria ido a uma sala de cinema
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em Salvador, onde morava com a família, com um bisturi. Ele não tinha sido incluído na primeira
lista de aprovados no vestibular de medicina em São Paulo e, de acordo com a juíza, Maria
Cecília Leone. do 1º Tribunal do Júri, teria declarado na ocasião que ‘teve vontade de ferir e
matar’”. (Folha de São Paulo, maio de 2004). Vale lembrar que, em 1993, o filme “O clube da
luta” nem cogitava ser produzido.
Em outra ocasião, em 1995, Meira afirmara ter esmurrado o pai, quebrando-lhe três
costelas. Mateus Meira disse que teve um outro surto ao cortar o punho após nova briga com o
pai. O fato de trocar as fechaduras de seu apartamento em São Paulo; para evitar a entrada de
parentes, não foi explicado à juíza. O estudante afirmou ter se viciado em cocaína, três meses
antes do crime, mas disse que não consumiu a droga no dia derradeiro.
Outras reportagens dão conta que Mateus Meira já demonstrava desequilíbrios através
da Internet. O assassino do shopping era Spammer inveterado, o que motivou a criação do
movimento Anti-Spam brasileiro em 1997. Desmascarado, Meira passou a reagir violentamente
lançando campanhas difamatórias contra o movimento Anti-Spam.
“O psiquiatra, Jose Cássio do Nascimento Pitta, responsável pelo
acompanhamento do ex-estudante de medicina, desde o dia do crime,
enfraqueceu a tese de incapacidade mental, apregoada pela defesa. Disse
que Mateus Meira não apresentava sintomas de surto psicótico três horas
depois do crime. O psiquiatra falou com o ex-estudante na delegacia (…)
Pitta disse que Meira, na mesma ocasião, não mencionou ter sofrido delírios
ou alucinações antes de ter atirado com uma submetralhadora em direção à
platéia (…) Ele deu a Meira o mesmo diagnostico psiquiátrico relatado em um
laudo feito por peritos nomeados pela justiça, o de transtorno de
personalidade esquizóide, problema que não o impediria de ter consciência
de seus atos (…) Para a Promotoria, os depoimentos de Pitta e Belochi
reforçam a suspeita de que Meira não estava em surto psicótico e premeditou
o crime ” (Folha de São Paulo, 03/06/2004).
Diante do novo panorama, a defesa de Mateus tenta mostrar que problemas com o pai
fizeram o estudante de medicina cometer o crime. O advogado de Mateus, Benedito de Oliveira,
afirma que tem provas contundentes de que a família do assassino é bastante problemática.
Vale lembrar que o editorial do Estado de São Paulo do dia 9/11/99, ao culpar o filme, televisão e
os videogames pelo crime, afastou irresponsavelmente uma das hipóteses mais plausíveis: a
desestruturação familiar. Tanto é que este argumento foi acolhido depois pela própria defesa do
estudante, no dia derradeiro ao julgamento.
No mesmo dia, 3 de junho de 2004, Mateus Meira é condenado a 120 anos e seis meses
de reclusão por matar três pessoas, tentar matar outras quatro e colocar em risco outras tantas
em uma sala de cinema do Morumbi/Shopping. A tese de desvio mental foi refutada e Mateus foi
considerado pela juíza Maria Cecília Leone, como uma pessoa que agiu covardemente e por
livre-arbítrio, além de ter problemas para desenvolver afeto, com plena consciência de tudo que
faz.
Apenas com o choque natural dessas informações que esclarecem o caso “Mateus
Meira” pode-se ter uma idéia da dimensão dos equívocos e irresponsabilidades veiculados pelo
site Observatório da Imprensa. Tamanho grau de precipitação remete diretamente ao famoso
incidente ocorrido na Escola de Base. Em 1994, os donos da Escola de Base foram acusados
injustamente pela policia e – por tabela – pelos jornalistas de promover orgias com alunos
menores. Depois da absolvição dos acusados, imprensa, Estado e autoridades políciais foram
condenados a pagar indenização.
O caso é considerado como sendo um exemplo exato da aura extrema de falibilidade
que cerca tanto o meio policial como o meio jornalístico. Um erro de julgamento que pode ser
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ampliado ainda mais pela precipitação inquisidora dos ‘detratores’. Posteriormente, nas
faculdades de jornalismo, o ocorrido na Escola de Base, serviu como modelo ético do “como não
proceder”.
Ouvir declarações sem checar, dar importância à onda de “denuncismos” sem fazer
averiguação, sem escutar o ‘outro lado’; esses são dois dos erros crassos da unilateralidade a
ser evitada no meio jornalístico. Outro erro comum ao “foca” – jornalista iniciante – é não
desconfiar dos argumentos de um assassino ou criminoso confesso. Querer se livrar do peso da
responsabilidade, e encontrar um bode expiatório, são artimanhas facilmente identificáveis em
muitos desses criminosos.
Para um site que se diz fiscalizador dos veículos midiáticos, a conclusão do caso não
poderia ser pior. O Observatório da Imprensa cometeu todos os erros a que me referi. Na
concepção fantasiosa do site, Mateus Meira é um fantoche da mídia, dos filmes, da televisão, da
música, das drogas e das armas. O cidadão em carne e osso, Mateus Meira, com todo seu
complicado histórico, não existe para o site. A cultura midiática produz simulacros que agora
criam vida sozinhos e saem matando. “O assassino que saiu da tela”, foi o bordão/clichê mais
utilizado. A frase é do articulista e ex-cineasta, Arnaldo Jabor, que escreve para diversos
veículos de comunicação.
1.3 – O caso “Mateus Meira”: mitologia e simulacro
Interessante fazer a leitura do caso “Mateus Meira” sob a ótica de dois dos mais
interessantes conceitos que remetem à construção e desconstrução semiológica (e que
possuem relativa proximidade): a “mitologia” de Roland Barthes e o “simulacro” de Jean
Baudrillard. Farei isso sem o ativismo e a retórica marxista, que impregnam tanto os escritos de
Baudrillard como os do Barthes da década de 50, levando-os ao mesmo beco sem saída em que
se perderam a primeira geração da Escola de Frankfurt – leia-se Adorno e Horckheimer. Antes,
porém, faço uma pequena síntese dos dois modelos, apontando as semelhanças, nuances e
diferenças; tentando encontrar saídas para alguns dos impasses suscitados.
O conceito de mitologia de Roland Barthes é uma releitura de outros conceitos mais
antigos como o “fetichismo da mercadoria” (o modo de produção burguês agregando fantasia ao
valor de uso da mercadoria), a “ideologia” (instrumento de dominação que distorce e mascara a
realidade de modo a alienar as consciências humanas) e a questão da “autenticidade e
inautenticidade” (que em Heidegger, significa a emancipação do homem através da angústia
existencial ou sua queda dentro do abismo da superfície e da inconseqüência). Dentro desse
processo de releitura, Barthes se utiliza dos sistemas semio lógicos, o que vitaliza
consideravelmente o processo de desconstrução e desmontagem das relações sociais
simbólicas, através dos seus textos críticos.
Segundo Roland Barthes, o mito é uma fala roubada e restituída de maneira adulterada;
um sistema de comunicação ou mensagem despolitizada intencionalmente. Qualquer objeto ou
matéria é suscetível de apropriação e uso social e pode tornar-se mito. Toda unidade ou síntese
significativa, quer seja verbal ou visual, artigos de jornal, fotografias, etc, são falas. Tudo pode
servir de suporte para a fala mítica, cujo fundamento é histórico, mas essa mesma fala mítica é
formada, sobretudo, de uma matéria já trabalhada anteriormente, com significação.
O mito seria uma espécie de sistema semiológico segundo que se edifica sobre um
alicerce semiológico que existe antes dele; é sistema duplo que se caracteriza pela alternância e
ambigüidade. Esse sistema semiológico é um signo que funciona como significante no sistema
segundo, deslocando em um grau o sistema formal das primeiras significações. Assim, o mito é
formado por dois sistemas semiológicos, um deslocado em relação ao outro.
Todo o sentido (face cheia), o contexto e a riqueza anterior do significante do primeiro
sistema são esvaziados e tornam-se forma (face vazia) no plano do mito, que se disponibiliza a
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receber um outro significado. A forma, que é o significante no plano do mito, não suprime todo o
sentido anterior, subjuga-o, empobrece, afasta e desloca. É como uma entidade parasitária
segunda que vampiriza a primeira.
A forma do mito não seria um símbolo, pois o símbolo é uma convenção feita às claras. O
mito, na verdade seria um corruptor e colonizador de símbolos. No plano do significado, o mito
implanta uma história totalmente nova e contingente ao conceito, que se torna efêmero, instável,
porque histórico. O novo conceito deforma e aliena o sentido anterior. Enquanto o signo é
arbitrário e imotivado, a significação mítica é sempre motivada, antinatural, contendo parcela de
analogia; sistema ideológico puro e mecanismo de corrupção do ponto de vista ético. Assim, o
mito estaria diretamente ligado à criação de fatos e de fetiche.
No sistema segundo (mítico) a causalidade é artificial, falsa, mas introduz-se
sorrateiramente nos “furgões da natureza”. Por essa razão, o mito pode ser vivenciado como
uma fala inocente; não porque as suas intenções estejam ocultas – se estivessem ocultas não
poderiam ser eficazes -, mas porque estão naturalizadas – posteriormente, Barthes diz que é a
ideologia burguesa que se naturaliza.
Para o senso comum, o significante e o significado teriam, a seus olhos, relações naturais.
Todo o sistema semiológico é um sistema de valores; o consumidor do mito toma a significação
por um sistema de fatos; o mito é lido como um sistema factual, quando não é senão um sistema
semiológico. O mito naturaliza um conceito construído. Transforma a história em natureza. Tudo
se passa como se a imagem provocasse naturalmente o conceito, como se o significante
fundasse o significado: “o mito existe a partir do momento preciso em que a imperialidade
francesa passa ao estado de natureza: o mito é uma fala excessivamente justificada”. (Barthes,
1956, 199)
Barthes termina dizendo que só o mito atinge toda a coletividade, e só nos afastando
desta última, nos libertamos desse sistema semiológico segundo. Paralelamente, prega a
necessidade de uma conduta preventiva/sarcástica/paródica/profilática, a fim de se evitar a
submissão inconseqüentemente ao mito.
Para Baudrillard, no processo de construção do simulacro – outra espécie de sistema
semiológico -, o que está em jogo é a liquidação de todos os referenciais, a substituição do real
pelo duplo operatório, a morte do real e sua ressurreição artificial no sistema de signos.
Enquanto a representação é a equivalência do signo e do real, a simulação é o aniquilamento de
toda a referência. Dentro do simulacro, o signo nada mais representa, “é jogo puro, o grande
jogo”. Aqui já encontramos diversas distinções em relação ao pensamento de Roland Barthes;
este fala de um sistema semiológico segundo que não aniquila o primeiro, e, mais otimista, ainda
acredita na possibilidade de reconciliação do real e do homem.
O simulacro seria uma espécie de sobreposição de ideologias, uma falsa intenção de
“realidade” criada a partir de uma falsa representação/figuração de mundo, em que o real
objetivo perde-se de vista, sendo liquidado nas palavras de Baudrillard. Trata-se de um
distanciamento cada vez maior do objeto até passar sem ele. Esse falso real sem origem e sem
realidade é o Hiper-real, que é também a recorrência orbital dos modelos, o real sem origem
nem realidade.
Enquanto a ideologia é a representação falsa da realidade, o simulacro seria o
escamoteamento de que o real já não é mais o real. Se a ideologia é intencional, o simulacro é
puramente operacional, de movimento autônomo, como se ligado num piloto automático. Formas
e modelos passam a moldar fatos que já não tem trajetória própria. Nasceriam da intersecção
dos modelos: “um único fato pode ser engendrado por todos os modelos ao mesmo tempo”.
(Baudrillard, 1976, 26).
O “Imperialismo do simulacro” anexa outras culturas destruindo seu passado simbólico –
extermínio simbólico; paralelo com o pensamento de Theodor Adorno, em que a técnica passa
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por cima da individualidade, do drama individual e particular, da nuance. O fascínio pelo segredo
é trocado pelo fascínio do visível, do unilateral.
Dentro desse contexto, Baudrillard assim esquematiza as fases sucessivas da
imagem:a)representação:ela é reflexo de uma realidade profunda, b)má aparência: ela mascara
e deforma uma realidade profunda,c)fingimento/sortilégio: ela mascara a ausência de uma
realidade profunda, d)Simulação: ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu
próprio simulacro.
Pegando carona com o livro “Apocalípticos e Integrados”, de Umberto Eco, acrescento às
análises críticas de Barthes e Baudrillard a necessidade de se colocar o pensamento crítico
como um todo no mesmo patamar do homem comum, no que se refere ao potencial
voluntário/involuntário de sucumbir às mitologias e simulacros, e também o de construí-los.Ora,
Umberto Eco já dissertou sobre o quão improdutivo é a disseminação de sentimentos
apocalípticos e conceitos-fetiches, através de críticos de uma visão mais elitista, preconceituosa
e conservadora – o que contribui para a proliferação de mitologias dentro de pensamentos
pretensamente críticos/emancipados.
O mesmo pode-se dizer de um certo ativismo ideológico datado que contamina
historicamente todos aqueles que se dizem críticos e imunes aos condicionamentos. Isso inclui
Barthes, Baudrillard, e quem quer que seja, pois ninguém é isento o bastante para escapar de
erros. Assim, o próprio Baudrillard sucumbe aos impasses-fetiche que ele mesmo suscita, ao
não acreditar em nenhuma possibilidade de emancipação crítica em terreno burguês – e isso
inclui todos os meios de comunicação da época. Ora, o que Baudrillard quer dizer quando prega
que o real morreu, exterminado pelo simulacro e que não pode ser mais encontrado, é na
verdade a sua própria passividade em não tentar agregar sentido dialético e histórico ao “campo
de batalha social” contemporâneo. É saudosismo de um real utópico e ideal que, na prática,
nunca existiu e que só pode existir no papel A busca de um real inatingível vai sempre envolver
construções sígnicas/simbólicas, num processo sempre aberto e dialético.
Em seu livro, “Kaspar Hauser ou A fabricação da Realidade”, Izidoro Blikstein argumenta
que mesmo a experiência perceptiva já é um processo não-verbal de cognição, de construção e
ordenação do universo. A existência de uma práxis social/cultural e um sistema de crenças
condicionadas pode determinar a percepção e o sentido, e isso sempre existiu na história da
humanidade.
“Na verdade, o que julgamos ser a realidade não passa de um produto da
nossa percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas
culturais já definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi
fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a
percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela
linguagem. O processo do conhecimento é regulado, então, por uma
contínua interação de práticas culturais, percepção e linguagem” (Blikstein,
1985, 2)
Ora, a própria desconstrução sugerida nos textos de Baudrillard é uma forma de ação
dialética e criativa, na medida em que desarranja a práxis e os corredores isotópicos,
desmontando os estereótipos perceptuais. Se as coisas se tornam obscuras, nada como lutar
para que elas clareiem, para que as relações invisíveis se tornem visíveis. Nesse sentido, de me
aproveitar dos achados mais pertinentes contidos nas análises de Barthes e Baudrillard, sobre a
mitologia e o simulacro, nesse importante movimento de desconstrução semiológica, retrocedo
novamente ao caso da chacina no Shopping Morumbi.
Há de se tentar responder agora a pergunta contida no primeiro bloco desse artigo: No
caso específico de Mateus, por que dar tanto crédito às declarações de um assassino
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plenamente identificado, com razões de sobra para encontrar um bode expiatório e, com isso,
amenizar a própria culpa?
“De fato, o que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é que não vê
nele um sistema semiológico, mas um sistema indutivo: onde não há mais do
que uma equivalência, ele vê uma espécie de processo causal: o significante
e o significado têm, a seus olhos, relações naturais. Pode exprimir-se esta
confusão de outro modo: todo o sistema semiológico é um sistema de
valores; ora, o consumidor do mito toma a significação por um sistema de
fatos: o mito é lido como um sistema factual, quando não é senão um sistema
semiológico (Barthes, 1957)”.
Barthes fala numa motivação oculta e consciente a orquestrar/tecer o mito. Havia uma
motivação em Mateus Meira ao forjar o próprio álibi, ao construir o mito e o simulacro que
aliviaria o peso da responsabilidade solitária do crime. Essa motivação do estudante encontrou
respaldo e solo fértil na proliferação de uma mesma espécie de mitologia, involuntária, por sua
vez, fundamentada na cabeça de muitos jornalistas, psicólogos e críticos culturais, graças a um
outro ativismo ideológico datado: leia-se a crença dos mesmos na idéia de receptor passivo, da
“massa” totalmente vulnerável e reprodutora sistemática do conteúdo veiculado pela “Indústria
Cultural” – no caso, os filmes -, do desconhecimento das novas linguagens propostas pelos
mass-media, particularmente o cinema.
Se a disciplina “Comunicação”, como o cinema, é algo ainda muito recente, é natural que o
conhecimento aprofundado de seus paradigmas não tenha alcançado boa parte da nossa
“inteligentsia”. Tamanho vácuo deu respaldo ao álibi forjado de Mateus Meira. E não é a toa
que muitos desses jornalistas, psicólogos e críticos culturais não apenas deixaram de indagar a
veracidade da afirmação do assassino como ajudaram a corroborar a tese do mesmo, alargando
ainda mais o universo das mitologias involuntárias em torno do tema, sustentando o simulacro
arquitetado por Mateus. O mito representado premeditadamente por Mateus Meira
fundamentava o mito latente e involuntário daqueles profissionais citados, pautado no
ressentimento elitista, a ignorância e o preconceito acumulados contra as novas mídias, em
particular o cinema.
O histórico pessoal de Mateus Meira saia quase que totalmente do foco. Dentro da
construção voluntária ou não da mitologia não há interesse no histórico pessoal, nas nuances.
Tudo é esvaziado de modo a dar consistência a um sistema semiológico segundo, o mito. Já nos
dizeres de Baudrillard, entrava em cena um simulacro e o extermínio do real? Pois o que fez o
estudante de medicina foi lançar também um simulacro que encontrou terreno fértil num
ambiente de mitologias e bodes expiatórios, que fez jorrar outras tantas mitologias e a tentação
de fazer seguir adiante a proposta desse mesmo simulacro, como de fato ocorreu. Não significa
dizer que o histórico pessoal de Mateus Meira tenha se perdido de vista, na verdade, não havia
interesse algum em procurá-lo. Eram apenas “detalhes” dentro de veredictos e construções
mitológicas já deflagrados previamente.
Podemos indagar a razão do estudante de medicina não acusar a literatura, que também
veicula conteúdo violento; a razão dos professores de Virgínia Tech não mencionarem o teatro,
uma das atividades de Cho Seung-hui – o estudante escrevera algumas peças de conteúdo
extremamente violento-; ou mesmo de se colocar a própria mídia jornalística no banco dos réus
pelo mesmo motivo. Talvez, muito em virtude do cinema ser um bode expiatório mais
contingente e apropriado nas duas ocasiões..
O jornalista Alberto Dines não estava interessado em analisar a linguagem do filme,
fazer análise sociológica, antropológica, culturológica, estruturalista, psicológica ou semiótica.
Nem em exercitar uma análise de conteúdo para identificar o que “O clube da Luta” estava
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querendo dizer. Para ele , bastava se tratar de um filme com cenas violentas. Tratava-se também
de escolher unicamente a Teoria Hipodérmica de cunho behaviorista e o jornalismo de superfície
e sem contextualização, para pincelar noções unilaterais sobre um filme e o cinema, negando
décadas de pesquisas e teorias na área da comunicação.
Se Dines estivesse se utilizando dos parâmetros da já defasada teoria da informação,
proposta por Shannon e Weaver (1949), poderíamos dizer que ele – Dines – reduziu tudo a uma
mensagem (de violência), transmitida por um emissor (criadores do filme), para um destinatário
(receptor, no caso, o estudante Mateus Meira), através de um canal/veiculo (cinema) e
utilizando-se de um código (mimese cinematográfica).
Na verdade, por ser uma arte, o cinema utilizaria das funções emotiva (expressão direta
das emoções do emissor), poética (efeito estético da linguagem) e metalingüística (elaboração
de um discurso e de uma linguagem), mas a análise de Alberto Dines, que limita o estudo das
estruturas lingüísticas e se restringe à relação mecânica de causa e efeito, leva a distorção do
entendimento dessas funções e a relação de cada uma delas com o cinema.
Dines, nunca se atendo aos demais conteúdos da obra, ignorados completamente, quer
fazer crer que “Clube de luta” passaria a mensagem exclusiva da violência,. O filme se utilizaria
da função referencial (que faz referência ao contexto, no caso a “cultura da violência”) e da
função conativa ou apelativa, que estaria mobilizando a atenção do receptor, plantando-lhe
indiretamente – como uma propaganda disfarçada e inconsciente -, as sementes da violência
real, dentro da platéia também real. O fato de Mateus Meira chegar às vias de fato, denotaria
toda a eficiência fragmentada desse sinistro processo comunicativo. Um equívoco de
pensamento e um enorme reducionismo epistemológico.
A violência real vem sendo ilustrada com ênfase constante por parte da mídia jornalística.
Muitos setores da sociedade dão mostras de reações impulsivas e pragmáticas frente à questão.
Ao invés de se encarar o problema da violência com a cautela e profundidade necessárias, a
precipitação e o apelo aos paliativos e bodes expiatórios acabam ganhando relevância. Nesse
sentido, a violência ficcional contida na arte e no entretenimento, e especialmente no cinema, é
colocada no banco dos réus, numa tentativa de exorcismo da violência real no plano do
imaginário.
Tal discussão divide os mass-media. Jornais, revistas, televisão e os noticiários em geral se
defendem da acusação de sensacionalismo, espetacularização e banalização dos acontecimentos
reais de violência e passam a atacar a outra metade dos mass-media, mais voltada à
ficção/entretenimento:: cinema, desenho, vídeo-game, RPG, quadrinhos e a música seriam os
verdadeiros culpados pela efetivação da “cultura de violência”, com reflexos decisivos no mundo
real.
Parte do legado da Teoria da Indústria Cultural, de Adorno e Horkheimer, leia-se
preconceito aristocrático, serve de matéria prima para os críticos neo-apocalípticos da atualidade,
que também se utilizam de outras heranças dos primeiros frankfurtianos: a aproximação datada
com a Teoria Hipodérmica, de cunho behaviorista, e a crença sistemática no receptor passivo. O
círculo de equívocos, confusão e mitologias, no sentido barthesiano do termo, se fecha, quando
esses pseudodiscípulos da Teoria da Indústria Cultural passam a atacar a violência de filmes com
raízes na contracultura como “O homem que copiava”, de Jorge Furtado, “O Bandido da Luz
Vermelha”, de Rogério Sganzerla, “Deus e o Diabo na terra do Sol”, de Glauber Rocha, “Crash,
estranhos prazeres”, de David Cronemberg, “Mulheres Diabólicas”, de Claude Chabrol, “Cidade
de Deus”, de Fernando Meirelles e “O Clube da luta”, de David Fincher, exemplos mais recentes,
além do eterno “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, sem lembrarem do estreito vínculo
existente entre a Teoria Crítica e essa mesma contracultura.
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Referências bibliográficas
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